sábado, 12 de janeiro de 2008

Introdução - Green Mountain

Green Mountain. Uma cidade como outra qualquer, com um grande número de habitantes, grandes casarões e carros importados; uma cidade com ruas direitas, sinalizadas e asfaltadas, sem exceção. Se situa em um canto do litoral catarinense, próxima a capital. As pessoas, totalmente luxuosas, como suas próprias casas evitavam o máximo enxergar o desleixo da parte sul da cidade. A Rua da Calamidade era a pior de todas; a rua é mal sinalizada e esburacada, muitas vezes vândalos despejam o lixo no meio da calçada durante a noite. Porém, a desorganização não é o que mais incomoda a população do centro da cidade. Entre todas as grandiosas casas e seus jardins perfeitamente aparados há uma em que é impossível não observar quando se passa por ali, a Residência Sullivan.

Um magnífico casarão branco, parecido com um palácio governamental, com suas grandes janelas azuis no térreo e o no primeiro andar, e uma pequena janelinha onde deveria ser um sótão. A porta da frente de carvalho resistente era visível para quem olhava por entre as grossas grades de um portão alto de ferro, e um enorme muro de tijolos vermelhos cobria quase todo o quarteirão daquele lado. O casarão ficava um tanto elevado da rua, assim, uma escadinha de ladrilhos claros ia do portão até a soleira de entrada e aos fundos.

O mais esquisito de tudo isso não era o fato de ser considerado o maior casarão de Green Mountain, ou simplesmente de situar-se na rua mais desleixada da cidade. O que deixava os moradores curiosos sempre que passavam por ali era o de não saber quem eram os donos da tal propriedade. Durante a manhã a casa era aberta pelos empregados e o jardineiro, um velho senhor de cabelos calvos, trabalha até o final da tarde; no fim do dia os empregados iam embora e a casa ficava fechada. Um bando de curiosos já tentaram abordar umas três funcionárias da Residência, para investigar sobre o tal dono da propriedade, mas pareciam ter feito um contrato de silêncio absoluto.

Aquela tarde de final de verão estava perfeitamente normal na Rua da Calamidade, as casas com suas janelas abertas, deixando a brisa calorífica passar por entre os quartos e salas, inclusive a Residência Sullivan, onde nossa história acontece. O Sr. Sullivan era um homem muitíssimo ocupado, ainda mais depois da misteriosa morte de sua esposa há uns anos atrás. Não se sabe ao certo em que ele trabalha, mas sai de casa quando ainda está escuro e só volta no meio da madrugada, quando seu filho já está adormecido.

O garoto também nunca fora visto pelos vizinhos, o que deixava um outro ponto de interrogação sobrevoando por aí. Onde ele estudava? Que lugares freqüenta para se entreter com os amigos? Isso era realmente muito estranho para um adolescente.

Os portões do casarão mantinham-se fechados todo o tempo, somente aberto para entrada e saída dos funcionários. Os Sullivan não possuíam carro ou outro meio de transporte, mesmo com toda grana que têm. Para se viver em Green Mountain, dinheiro era a palavra chave, e o Sr. Sullivan de alguma forma tinha um contato íntimo demais com o prefeito da cidade, o Sr. Skipper.

O jardineiro estava regando o gramado em frente à propriedade, com uma mangueira amarela, concentrado em seu trabalho. A janelinha do sótão mantinha-se fechada, com o cortinado cerrado. Rolava boatos de que lá vivia o filho do Sr. Sullivan e que lá era o seu quarto, contudo são boatos e muita gente chegava a acreditar nisso. Enquanto o velho homem molhava a grama verde, o sol queimando a parte careca de sua cabeça, ele nem sequer percebeu o movimento repentino e o barulho de uma janela bater. A cortina no sótão, que antes estava parada, agora se mexia lentamente até parar. Ninguém passava pela rua no momento, então, não fez nenhuma diferença.

Janeiro transcorreu normalmente por aquela região e fevereiro chegou com uma brisa não muito abafada. Agora até as plantas da Residência pareciam satisfeitas com o clima mais fresco e o velho jardineiro como sempre, ficava de olho para que tudo estivesse em devida ordem. Ninguém havia notado que o portão do casarão fora aberto e que um homem saíra da propriedade, caminhando de modo apressado. Com certeza havia um compromisso importantíssimo para tratar com alguém com muito sigilo.

Por sorte o homem conseguiu caminhar durante toda a Rua da Calamidade sem nenhuma preocupação, contudo, ao dobrar a esquina e seguir pela Rua Nebulosa um grupo de senhoras desviaram os olhos curiosos da vitrine de um brechó para observá-lo. Ele apenas continuou caminhando, sem ao menos dar atenção às mulheres. Por uns vinte minutos ele seguiu, atravessando quase todo o centro de Green Mountain até chegar em uma rua muito distante de seu casarão. As casas, todas iguais, estavam com as janelas semi-abertas por causa do ventinho sul que batia naquela região.

O homem finalmente parou, e meteu uma das mãos dentro do paletó e retirou um envelope pardo, sem nada escrito por fora, porém, era grosso demais para ser uma carta de despedida ou até mesmo um convite para uma festa. Andou por mais uns cinco minutos até parar em frente a uma das pequenas casas, ir a direção à porta e tocar a campainha.

A porta quase fora arrancada do lugar ao ser aberta e um garoto quase da mesma altura que o homem recém chegado, vestindo um sobretudo um tanto velho e com a aparência de quem acabara de ser interrompido de um sono muito bom.

- O que você faz aqui tão cedo? – a voz do garoto saiu arrastada. Abriu espaço para o senhor entrar e fechou a porta rapidamente.

Foi difícil encontrar um lugar para se sentar, tal era a bagunça e desordem do quarto-sala que o homem acabar de entrar. Por fim ele se acomodou em uma cadeira velha que estava coberta por roupas sujas.

- E então? – o garoto abriu a geladeira e pegou uma garrafa de cerveja e a abriu com as próprias mãos. – Não vai responder a minha pergunta?

- Já falei que não quero vê-lo bebendo esse tipo de coisa filho...

- E quantas vezes eu já lhe falei – largou a garrafa sobre a mesa apodrecida -, que não gosto que você me chame de filho, Hélvio?

Os dois ficaram se encarando durante um bom tempo. O garoto hesitou em pedir desculpas, mas Hélvio falou na sua frente.

- Vim saber se aquelas “coisas” ainda andam atrás de você, Harvey.

Hesitou novamente antes de responder, talvez porque o homem dissera seu nome, coisa que nunca fizera antes.

- Eles não descansarão até conseguirem me capturar – Harvey pôs a garrafa novamente dentro da geladeira e pegou uma outra cadeira para se sentar. – Fiz o que o senhor me pediu. Saio somente para levar o lixo para fora e me recolho para dentro.

- Não é fácil, não é? – Hélvio perguntou, seus olhos fixos no garoto ao seu lado. – Por sorte não encontrei nenhum deles enquanto vinha para cá a não ser um grupo de senhoras que moram na mesma rua que eu. Já que seu irmão estava dormindo eu...

Harvey derrubou um copo encardido que estava em cima da mesa que se espatifou no chão.

- EU – NÃO – TENHO – IRMÃO!

- Deixei escapar, me desculpe – Hélvio levantou-se e foi em direção a janela entreaberta. – As coisas podem piorar a qualquer momento Harvey, já que o seu aniversário está se aproximando.

O garoto parou de juntar os cacos de vidro do chão e olhou para o seu pai.

- E...?

- Eu já lhe expliquei várias vezes que eles virão buscá-lo e o levarão a ela.

Hélvio destravou a janela e a fechou completamente, fechando também todo o cortinado. Foi em direção à porta e a trancou, tirando a chave e colocando-a em cima da geladeira.

- Há alguns anos, antes de você nascer, eu havia feito um acordo, recorda? Só que eu menti durante todos esses anos para minha esposa e meus filhos. Na verdade nenhum dos dois sabe da sua existência então não faz diferença alguma. Mas era para eu ter entregado você para o lado escuro da nossa terra, porém eu não cumpri a promessa e é por isso que estão atrás de você.

- Me levar para onde, os Jardins...?

- Isso – Hélvio falava quase que num sussurro. – Fevereiro passa muito rápido e março logo estará aí. É quando terei certeza absoluta de que virão te capturar.

Harvey se levantou com os cacos de vidro do copo e colocou tudo em uma sacola antes de levar até a lixeira.

- Então, talvez seja melhor eu me mudar para um outro lugar, sei lá. – voltou sua atenção para Hélvio que prestava atenção em qualquer ruído. – Sua casa não é enorme?

- Não há necessidade – Hélvio falou e percebeu um ar de desapontamento em Harvey. – Esta casa é vigiada vinte e quatro horas por gente igual a nós, só que temos que ter mais cuidado com os inimigos. Por fim, não se preocupe. Nada irá acontecer com você fi... digo, Harvey.

O garoto não falou nada. Apenas abriu um meio sorriso pelo canto da boca que foi despercebido. Depois disso, pegou uma cadeira e colocou-a próximo a Hélvio e sentou-se nela.

- E o prefeito da cidade, o que falou? – perguntou ele, fazendo sinal para o homem sentar-se na cadeira ao lado.

- Bem, ele não quer mandar mais seguranças para cá desde o último massacre que felizmente foi abafado – Hélvio respondeu levando as mãos à cabeça, lembrando-se do acontecido. – Foi algo tão... desumano mutilar os corpos de doze homens que vigiam essa área. Não, não, o prefeito Skipper disse que quer ficar por fora disso, pois já tem seus dois filhos para cuidar.

- Prefiro não lembrar daquele dia – Harvey fez uma careta estranha. – Naquele dia eu pude ouvir eles falando que estão recrutando um número enorme de pessoas como nós para se tornarem iguais a eles. Disseram que há dois deles em Subúrbio e mais uns quatro no centro de Green Mountain.

Hélvio não desgrudava os olhos da porta.

- Você acha que essas pessoas já foram capturadas, Hélvio?

- Eu não sei – ele levantou-se novamente e caminhou em direção a porta. – O que devemos fazer é esperar o sinal dos guardiões para transferi-lo daqui o mais rápido possível. Está na hora de eu ir andando, tenho uma outra visita para fazer.

- Quem?

- Alguém que tomará conta do seu... de meu filho, para que o direcione no caminho certo – Hélvio disse calmamente, quase deixando a palavra “irmão” escapar de sua boca.

Harvey o seguiu até porta, pegou a chave sobre a geladeira e a destrancou, para que Hélvio saísse.

- Tem certeza de que tudo ficará bem? – agora era o garoto que parecia estar preocupado.

- Confie em mim filho – Hélvio respondeu, levando uma de suas mãos na cabeleira arrepiada do garoto, que não fez objeção alguma à simples menção da palavra “filho”. – Farei o possível e o impossível para que nada de ruim lhe aconteça. Escreva-me quando março chegar.

E dizendo isso ele seguiu caminho, passando por todas aquelas casinhas geminadas, e Harvey fechou a porta sem fazer barulho algum, deixando a rua novamente vazia como sempre esteve àquela manhã.

Tudo estava perfeito até então em Green Mountain. Hélvio sequer recebera uma carta de Harvey até os dez primeiros dias de março e isso o deixou muito preocupado. A casa em frente à Residência Sullivan finalmente havia sido vendida, porém nenhum novo morador aparecera até então. Uma outra manhã ensolarada do terceiro mês do ano chegou e está na hora de entrarmos na casa de Hélvio Sullivan, que com certeza deve estar acordando neste exato momento. Mas não é aí que tudo começa realmente. Iniciaremos nossa jornada pelo sótão, onde alguém muito diferente também parece estar despertando.

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