Um despertador tocava em algum lugar, ele sabia. Olhou para o relógio luminoso que havia sobre uma mesa de cabeceira e viu que eram nove e dez da manhã. De má vontade, levantou-se irritado e começou a se vestir, trocando o pijama por uma calça
jeans e camiseta preta. Estava com muito mau humor e com sono. Foi até a pequena janelinha de seu quarto - parecia ser a única do quarto – e abriu o cortinado para ver o dia chato e monótono que o aguardava.
Seu quarto era no sótão, e tinha vista para uma grande parte da cidade; a rua abaixo estava movimentada por carros e
ônibus que passavam loucamente por aquela estrada cheia de buracos e calçadas sujas, onde as pessoas caminhavam com dificuldade. Mas isso não era culpa dos moradores da Rua da Calamidade; no meio da madrugada, vândalos passavam por aquela rua, despejando os lixos que os moradores tanto se empenharam em colocar nas latas de lixo enfileiradas.
Ele fechou o cortinado e voltou para cama, onde sentou-se com a cabeça baixa. Havia um bonito óculos escuros na mesa de cabeceira ao lado do despertador luminoso; pegou e colocou-o, escondendo seus olhos. Levantou-se novamente, com arrogância, e se dirigiu até um velho guarda-roupa que ali havia. Em uma das portas um espelho rachado
refletia a imagem de um garoto alto, a pele um tanto parda, com pernas grossas e braços um pouco musculosos, embora tivesse a aparência de um moleque totalmente desnutrido, tinha um nariz
reto e seus lábios eram “carnudos”. O cabelo era um castanho muito escuro, curto e ondulado. Os olhos, contudo, estavam ocultos pelos óculos escuros e, o mais interessante era o fato de ninguém saber
exatamente sua cor. Durante alguns segundos ficou ali parado, se mirando no espelho rachado, vendo seu perfil sem graça. Seus óculos
refletiam um rosto preocupado e arrogante de um garoto que daqui a três dias estaria completando
dezesseis anos de idade, e daqui a uma semana estaria indo estudar no colégio novo da cidade.
Sonhava com isso desde os oito anos, quando via garotas e garotos uniformizados, conversando e levando lanches para a escola. Imaginava-se indo para a escola, com vários amigos, rindo de alguma piada que tivessem acabado de contar. Mas os motivos de risos e esperança haviam sido levados embora, logo depois que sua mãe morrera, quando ele tinha nove anos. Desde então não falava com mais ninguém a não ser o pai e seu irmão, que no momento estava na Itália terminando os estudos. Após a morte da mãe, o garoto nunca mais sorriu, brincou, ou até mesmo saiu dos terrenos da casa. Trocou a personalidade alegre e brincalhona para uma totalmente inversa; se tornou frio, infeliz, amargo e grosseiro. Mas estava tentando ao máximo ser pelo menos gentil e aventureiro.
Seu pai lhe dava aulas em casa desde que tinha sete anos. Ficavam as tardes presos na sala de visitas. Sobre a grande mesa, o pai do garoto colocava pilhas de livros com várias
autorias e assuntos diversificados. Estudavam sobre Guerras Mundiais, gramática e cálculos complicados, estudavam também Geografia Mundial e Nacional, História Antiga e Contemporânea, entre outras. Ele gostava muito de estudar com seu pai – embora fosse muito difícil admitir -, mas estava realmente ansioso em estudar no colégio da cidade. Teria que ir hoje ao colégio para a confirmação da matrícula e comprar seu material escolar.
Quando acabavam os estudos em casa, seu pai lhe dava aulas de Esgrima, e praticavam durante horas até ficar tarde da noite e ele ir para o seu quarto.
Embora fosse grosseiro, um pouco chato, quieto e não gostasse de fazer amizades,
Hardrik Sullivan nunca havia ficado feliz como naquele ano. Mais tarde ele iria comprar seu material escolar e iria finalmente sair para a vida social. Ao pensar nisso abriu um sorriso. Olhou mais uma vez para o despertador e viu que já eram nove e
dezessete. Lentamente abriu a porta de seu quarto e saiu; havia uma
escadinha de madeira um tanto podre, a desceu e caminhou por um corredor, curto e tortuoso com paredes de madeira bonita e lustrosa. À medida que ele seguia uma outra porta na extremidade oposta da qual ele saiu a pouco aumentava seu tamanho. Abriu-a e continuou a caminhada.
No corredor pelo qual passava agora, havia um grande número de portas, todas com números talhados. A porta que acabara de fechar era a número trinta e três e havia sinais de violência em algumas partes dela. Continuou caminhando, exausto e esperançoso de chegar até a cozinha e encontrar algo para comer. Porta
dezessete, treze, oito, quatro... Finalmente passou pela porta número um e uma abertura à direita ia se ampliando.
Uma grande escada com carpete azul escuro e
corrimões de madeira, serpenteava até um espaçoso “
hall” com carpete da mesma cor que a escada.
Hardrik mal descera o primeiro degrau, quando a
campanhinha tocou com estrondo. Tinha o som um pouco parecido com um toque de guitarra.
Ele ficou parado no degrau que descera.
“Quem será à uma hora dessas?” perguntou a si mesmo. Estava pronto para ir atender, quando ouviu passos largos vindos do térreo.
- Um minuto! – disse uma voz masculina. – Quem será a essa hora?
Um homem alto e corpulento caminhava em
direção à porta.
Hardrik ficou imóvel onde estava. O homem parou em frente à porta de carvalho.
- Quem é? – perguntou.
- É o carteiro. – respondeu a pessoa do lado de fora. – Tem uma carta para o Sr.
Hard...
Mas antes que o homem respondesse,
Hardrik desceu rapidamente as escadas e abriu a porta. O carteiro estava parado na soleira da casa.
- Sou eu. –
Hardrik falou recebendo a carta do carteiro, que era bem menor que ele e se encolheu um pouco. – Não precisa ter medo. – o garoto falou olhando para o carteiro. – Pelo menos não hoje.
O carteiro abriu um sorriso forçado. O homem ainda estava atrás de
Hardrik quando o carteiro foi embora e o garoto fechava a porta. Era muito parecido com
Hardrik: bonito, alto; a pele parda igual ao filho, com cabelos escuros e ondulados e olhos castanhos escuros. O sorriso de
Hélvio Sullivan mostrava dentes brancos e brilhantes. Estava vestido com um bonito terno azul petróleo e sapatos lustrosos.
- Bom dia
garotão! – ele falou ainda sorrindo para o filho que estava com a carta na mão. – Pronto para tomar café? A comida está na mesa na sala se estiver com fome e...
Mas
Hardrik parecia não estar ouvindo nada que o pai estava falando. Ele estava com os olhos (embora não desse para ver) na carta que tinha acabado de receber. Era grossa e realmente endereçada para ele, pois abriu um largo sorriso. O Sr. Sullivan se espantou um pouco. Há muito tempo que ele não via
Hardrik sorrir daquele jeito. No nome do remetente estava escrito: Colégio Central.
O Sr. Sullivan leu o nome do remetente e abriu um sorriso para o filho.
- Finalmente chegou a carta que há tanto tempo você estava esperando. – ele colocou a mão sobre o ombro de
Hardrik. – Receio que você queira ir lá hoje...
Hardrik olhou para o pai. Tinha quase o mesmo tamanho e ficaram olhando um para o outro. O Sr. Sullivan ainda sorria e
Hardrik nunca o vira assim antes tão alegre. Ele suspirou, imaginando como seria sair dos terrenos de sua casa, os lugares onde iria ir. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, a campainha tocara novamente. Ele pôs a mão na maçaneta e abriu a porta. Era o carteiro mais uma vez.
- Sim? –
Hardrik falou de um modo cortês. Ele percebeu que o Sr. Sullivan estava rindo baixo e ele sabia o motivo: o carteiro de certa forma tinha certo medo do garoto.
- Eu... me esqueci... de entregar uma... uma carta p-para o senhor
Hélvio Sullivan, que...
- Esqueceu foi? –
Hardrik ergueu as sobrancelhas. Achava divertido colocar medo no carteiro, mas o Sr. Sullivan passou à frente dele e recebeu a carta das mãos tremidas do carteiro: - Muito obrigado! – o Sr. Sullivan respondeu gentilmente. O carteiro queria sair dali o mais rápido; então sem dizer nada desceu pela
estradinha de pedra e saiu pelos grandes portões que estavam abertos.
O Sr. Sullivan abriu a carta e lia silenciosamente. Parecia algo realmente importante, pois até o sorriso de simpatia dele havia diminuído.
Hardrik deixou o pai no
hall e se dirigiu até a sala onde uma grande mesa ao centro estava entupida de guloseimas: bolo de chocolate,
salgadinhos, brigadeiros, jarros de sucos de diferentes sabores, gelatinas,
pavês, cremes de chocolate e morango e diversos biscoitos. A maior surpresa dele foi um grande bolo de chocolate ao centro, com uma cobertura
cremosa e salpicada de pedaços de chocolate branco e velas com os números 1 e 6.
- Caramba pai! – ele exclamou. Não estava zangado. Muito ao contrário, a felicidade que ele estava quando recebeu a carta do colégio foi substituída por uma felicidade ainda maior.
Desde que perdera sua mãe seu pai nunca mais fizera festa alguma em respeito à sua memória. E nunca havia tido uma festa, muito menos uma festa surpresa na vida.
- Feliz aniversário adiantado filho! – o Sr. Sullivan chegou à sala abraçando o filho.
Hardrik sentiu uma pequena onda de calor e afeição por seu pai que não soube como explicar, abraçou-o bem forte também, sentindo que alguma coisa que iria alegrar sua vida daquele dia em diante.
- Obrigado pai – ele disse com a voz abafada antes de soltá-lo. – Mas quem preparou tudo isso?
- Encomendei da confeitaria Tortas e Guloseimas hoje cedo. Sorte que chegou a tempo. – o Sr. Sullivan ainda sorria. Foi até um balcão que havia na extremidade.
Sobre o balcão, feito de mármore branco, havia um embrulho bem minúsculo, que
Hardrik não tinha percebido. Estava forrado com papel de presente verde escuro e no centro iniciais R.G.
grifadas em prata. O Sr. Sullivan entregou o embrulho para o filho.
- O que é isso? - ele perguntou analisado o
embrulhinho. – Quem é R.G.?
O Sr. Sullivan deu uma risada.
- Você vai descobrir logo. Não vai abrir o presente?
Hardrik hesitou. Não sabia quem era esse ou essa R.G., contudo se seu pai pedira para que ele abrisse, era por que é algo bom. Rasgou o embrulho verde e retirou o conteúdo.
Era uma caixinha. Ele a examinou e viu que continha símbolos estranhos, que ele nunca vira antes. A abriu e o que encontrou fez o coração de
Hardrik acelerar: era uma corrente fina, bonita e prateada. Pendendo, continha uma coisinha que ele achou um pouco estranha: uma chave minúscula, parecia ser de ouro e havia nela uma
pedrinha de rubi.
Ele desviou o olhar da corrente para seu pai, que não parecia estar notando o filho agora. Seus olhos estavam fixos na carta que ele acabara de receber e estava lendo.
Hardrik não deixou de notar que havia um brilho nos olhos de seu pai que ele também nunca tinha visto. Por que o Sr. Sullivan estava tão feliz?
- Pai? – ele
pigarreou.
- Sim? – o Sr. Sullivan olhou para
Hardrik como se ele tivesse acabado de chegar ali.
- Por que o senhor me deu uma festa adiantada?
Faço aniversário somente daqui a dois dias. – ele queria ver se seu pai contava sobre o conteúdo daquela carta.
O Sr. Sullivan olhava para a carta com um olhar ambicioso. Colocou o papel de volta ao envelope e sorriu novamente como sempre fazia.
- Bem filho... – ele parecia um pouco mais ansioso do que antes. – Hoje seu pai aqui tem que viajar por alguns dias e...
- Viajar!? – o filho falou alto. Seu pai nunca havia saído assim antes e estava começando a estranhar o comportamento dele. – Quem mandou essa carta para o senhor?
A atitude de
Hélvio Sullivan mudou para pior.
- Quem é você para ficar se intrometendo em meus assuntos!? – ele deu um grito tão alto que a mesa com as guloseimas intactas estremeceu.
Hardrik se afastou um pouco do pai. Ele nunca tinha visto seu pai daquele jeito e ficou chocado com a transformação de um homem bondoso e sorridente para um “monstro”.
- Sou seu filho e tenho o direito de saber aonde o senhor vai! - ele gritou também. Ele hesitou por um momento e depois disse: –Não tem porque esconder as coisas de mim!
- Do que você está falando? Não coloque nossos assuntos particulares em discussões bobas! – Sr. Sullivan ainda falava em um tom alterado, porém, depois de ouvir aquilo ficou apreensivo. – Olha, se eu fosse você pegaria os documentos que estão sobre a mesa do corredor aqui
embaixo e iria para escola...
- Por que o senhor está fugindo do assunto
hein? –
Hardrik também estava ficando nervoso. Ajeitou os óculos rapidamente. – Minha mãe me entendia quando ela era viva sabia?
Hélvio murchou. A pequena menção à sua falecida esposa parecia tê-lo acalmado. Ele puxou uma cadeira e se jogou sobre ela, abaixando sua cabeça e colocando as mãos nos cabelos.
- Olha, filho, me desculpe, está bem? – ele tremia. – Não sei o que deu em mim sabe... É essa carta que me deixou assim.
Hardrik olhou para o pai.
- Tudo bem, pai. – ele se aproximou do Sr. Sullivan. De repente, sentiu vontade de lhe perguntar algo. Hesitou. – Pai...
- Sim? – ainda estava com a cabeça baixa.
- Eu não sou – ele parou, tentando encontrar a palavra realmente certa, mas já que não encontrou nenhuma outra. -... humano?
Hardrik olhou para o pai como que pedisse desculpas. Entretanto esse era um defeito dele. Sempre tocava neste assunto.
O outro levantou a cabeça rapidamente.
Hardrik se afastou um pouco, pensando que o pai iria gritar novamente; pelo contrario, sua voz foi calma e fraca.
- Filho. Claro que sim, mas somos um pouco... diferentes. Contudo, não é a hora certa para lhe contar tudo... Talvez se você chegar antes de eu partir, eu lhe conto tudo sobre o que você realmente é. Agora se me der licença tenho que arrumar minhas coisas.
Levantou-se e seguiu em
direção ao corredor que levava às escadas. Parou à porta.
- Você deveria comer pelo menos algumas dessas coisas antes de sair. - deu um sorriso forçado. – E comece a usar esta corrente a partir de agora!
Hardrik ficou ali na sala em pé, parado e com a boca entreaberta. Ele tinha certeza de que seu pai escondia alguma coisa. Tinha esquecido que ainda estava com a corrente na mão esquerda e na outra segurava a carta da escola que continuava fechada. Como já sabia que teria que ir para confirmar a matrícula, jogou o envelope no chão. Foi até a mesa e pegou alguns
docinhos que iria comer no caminho da escola. Não sabia como chegar lá
exatamente, mas iria perguntar para alguém, se lhe desse coragem. Colocou a corrente em frente aos olhos para mirá-la melhor, e viu que naquela
pedrinha vermelha de rubi estavam gravas duas letras: um “H” e um “S”.
Com certeza significava seu nome, mas, o que era aquilo tudo? Quem seria essa pessoa que lhe mandara um presente que parecia ser tão caro?
Saiu da sala, ainda distraído. Segurava a corrente firmemente até que uma coisa lhe veio à cabeça: seria algo em relação àquilo que falou sobre serem diferentes? Ficou muito curioso em saber quem ele realmente era. Sempre que perguntava ao seu pai sobre esse assunto, o mesmo mudava rapidamente de conversa.
Hardrik não notou que, enquanto estava com seus pensamentos longe, a corrente em sua mão começara a oscilar
frenéticamente. Depois de meio minuto ele percebera que a corrente agora oscilava como um pêndulo de um relógio. Assustou-se e tentou jogá-la no chão, porem o que viu fez ele se apavorar um pouco – a corrente estava de alguma forma, presa a sua mão, como se algo a atraísse. Não quis chamar o pai, acreditando na hipótese de que este ficaria zangado com ele novamente. A corrente balançava para lá e para cá, ficou nesse fluxo durante alguns minutos, no qual ele começou a ouvir passos vindos do andar de cima; não queria que seu pai o visse fazendo coisas erradas.
No instante em que o Sr. Sullivan aparecera no patamar da escadaria, a corrente parou.
Hardrik olhou para sua mão e a abriu. A corrente caíra no chão. Para sua surpresa o Sr. Sullivan começara a rir.
- O que está acontecendo aqui? – ele falava aos risos. Era incrível a mudança de personalidade dele. Voltou a ser o Sr. Sullivan simpático de antes. – Por que deixou seu presente cair?
- Escapou da minha mão. –
Hardrik falou apressadamente. Recolheu a corrente e guardou-a no bolso do
jeans. – O senhor vai sair agora?
- Sim – o pai disse, descendo as escadas. – Preciso ir a um lugar. Quer
carona?
- Na verdade não – o filho disse, com a mão segurando a corrente dentro do bolso. A corrente voltou a oscilar
agitadamente e ele a segurava o mais forte possível.
- Tenho que pegar dinheiro no meu quarto, estou sem dinheiro algum aqui.
O Sr. Sullivan chegara até o térreo onde o filho estava e fixou seus olhos nele. Estava sorrindo para
Hardrik como se ele fosse um
garotinho de seis anos que iria ao seu primeiro dia de aula da pré-escola: - Olhe filho, eu quero que você tenha muito, mas muito cuidado enquanto anda pelas ruas. Fique de olho nas pessoas e não confie em ninguém. Portanto...
Ele parou de falar. Demorou um pouco para terminar a frase.
- Portanto, eu quero que você chegue seguro em casa para termos nossa conversa.
Havia preocupação em seu tom de voz e novamente ficou sério. Ele deixou
Hardrik confuso. Abriu a porta e a fechou com um estalo deixando o garoto
paralizado.
Hardrik esperou um pouco, antes de tirar a corrente de seu bolso receando que seu pai voltasse. Sem ouvir passos lá fora, ele a retirou e a aproximou de seu pescoço – a corrente oscilou bem forte -, a afastou e viu que parara de oscilar. Teve uma
idéia e a fez, sem hesitar. Colocou-a sobre o pescoço e prendeu a respiração, esperando que alguma coisa acontecesse, mas nada aconteceu. Ele deu um suspiro de alívio e começou a comer um brigadeiro que pegara na mesa.
No momento em que fechou sua boca, ele percebeu que a corrente começara a brilhar e ficou grudada como um imã em seu pescoço. Ela o sufocava. Ele tentava respirar e gritava para pedir ajuda, mas não havia mais ninguém em casa. Os empregados ainda estavam de férias e a governanta principal fora viajar para Cuba.
Hardrik tentava tirar a corrente que estava o sufocando e cada vez que tentava, ela o apertava mais ainda. Sentiu que se elevava alguns centímetros do chão, a ponta de seu
tênis roçando o carpete de entrada e também seu coração disparar. Ele estava com muito medo. Sentiu algo completamente diferente, mas, antes de pensar em qualquer outra coisa, caiu no carpete frio.
Ele arfava.tremia e não sabia o que havia acontecido. Estranhou o silêncio que a casa havia tomado. Parecia tudo estar tão escuro. Segurou a corrente franzindo a testa temeroso. Tudo aquilo aconteceu logo depois que ele a colocara. Mas não tinha nenhum significado.
Hardrik se levantou,abriu a porta para sair. Seus pensamentos ainda na conversa que tivera com seu pai. Descia o caminho de pedra para chegar até o portão da propriedade. A parte externa de sua casa, por fora, era magnífica. Grande, branca, com as janelas pintadas de azul escuro e com telhados laranja. A porta era de carvalho e tinha um brasão marcado: um “S” prateado em frente a algum tipo de pirâmide com uma pequena porta; gramas verdes e vivas formavam um belíssimo cenário, com flores e algumas árvores que cobriam tudo em volta; somente em frente ao portão havia escadas que levavam à Residência.
Caminhava lenta e distraidamente, viajando em pensamentos distantes. Talvez não percebesse onde estava até o momento em que um
ônibus passara buzinando em frente ao portão a sua casa. Apressou o passo e caminhou mais rapidamente até chegar ao grande portão de cor bronze o qual ele abriu e o fechou com um baque. Tomou o caminho da direita, porém, mal dera um passo e vira uma coisa muito estranha ao lado da entrada da propriedade.
Prendido aos tijolos laranja do grande muro da propriedade havia uma grande placa de latão igual àquele que pendia na porta de entrada da casa dos Sullivan. Contudo, viu que abaixo daquela pirâmide com o “S” na frente havia a seguinte frase: RESIDÊNCIA DOS SULLIVAN - "Que os dias de sombra não o perturbem, e que dias de luz cheguem trazendo paz e harmonia".
Ficou parado durante alguns segundos. Não sabia o que aquilo queria dizer exatamente. Iria perguntar ao seu pai quando voltasse. Mexeu um pouco nos óculos para ajeitá-lo e saiu caminhando pela rua estreita e movimentada.
Por onde quer que ele passasse, as pessoas o observavam e ele não gostava nenhum pouco daquilo. Estava com muito calor, usando aquela camiseta preta e o jeans muito quentes; por sorte estava de óculos para ocultar seus olhos, mas afinal, ninguém sabia qual era sua cor.
Esse era de fato o motivo pelo qual Hélvio Sullivan não permitira que ele saísse quando era menor. Havia um segredo por trás daqueles óculos que ninguém sabia exatamente o que era. Nem Hardrik poderia explicar se alguém lhe perguntasse, nem ao menos seu pai, que nunca lhe contara a historia por completo. Só dissera alguma coisa sobre ele ser diferente.
Ele se recordou enquanto passava por um grupo de hippies, de coisas que aconteceram quando era menor. Quando ele fez seis anos de idade, ganhou um carrinho de controle remoto, mas não havia pilha; ficou tão bravo que o carrinho começou a funcionar sem o controle à pilha. Aos dez anos, em uma noite de natal que faltara luz, ele fez as lâmpadas de todo terreno de sua casa funcionar com um grito que ele dera; a ultima coisa estranha que acontecera fora há um ano, quando ele fez com que as luzes dos postes da Rua da Calamidade explodissem. Ele refletiu um pouco. Essas lembranças não tinham nenhuma ligação com seus olhos, mas sim com sua raiva.
Isso o constrangia um pouco.
“Será que sou um mutante?” Talvez fosse a raça que as pessoas mais têm medo, ou até preconceito. Os mutantes não estão escondidos, porém não estão andando por aí usando seus poderes. Ao pensar nisso, Hardrik sentiu uma pequena pontada no coração. Se ele fosse de fato um mutante, não ligaria nem um pouco, e adoraria conhecer mais deles. Mas ele tirou esse pensamento de sua cabeça quando estava passando em frente a uma clinica médica.
“Aquilo era impossível, um absurdo!” Como é que ele poderia ser um mutante? Era uma coisa que de fato não existia. Decidiu que já era melhor parar de pensar nessas besteiras e apressar o passo se quisesse chegar ao colégio cedo.
Hardrik estava caminhando pela Rua Nebulosa, quando sentiu um formigamento na nuca. Pressentiu que estava sendo vigiado por alguém, mas sempre que virava para trás, encontrava somente uma rua bem movimentada. O formigamento não parou. À altura em que chegou à Rua da Agonia, ele estava só, sem ninguém por perto. Os altos prédios cobriam toda a volta e não havia sinal algum de pessoas nas sacadas ou nas janelas. Até o sol havia desaparecido. Hardrik estava sozinho ali, em uma rua suja, com poças de lama e lixos espalhados no chão. Mas de repente ele parou. Olhou para trás, viu que estava escuro e sentiu que realmente não estava só.
Uma criatura estranha o observava, embora não tivesse olhos. Hardrik estava a três metros da criatura quando sentiu aquele cheiro de alho, um cheio horrível, o qual fez uma cara de nojo. No momento em que fechou os olhos, sentiu que algo o derrubara no chão. Tornou-se claro que o ser que ele observara a pouco, o atacara. Estavam caídos no chão molhado e sujo da rua vazia. Mesmo que o garoto gritasse não viria ninguém para ajudá-lo. E a situação piorou, quando ele viu que mais duas daquelas criaturas apareceram por ali também. A primeira o levantou, o pôs de pé em sua frente e o garoto se assustou com o que viu.
Pareciam pessoas, mas muito diferentes daquelas normais. Eram maiores que ele, vestidos de verde escuro, com limos em algumas partes e cheiravam a alho. O que mais deixou Hardrik apavorado eram seus rostos: completamente coberto por algum tipo de máscara antitóxica.
- O que vocês querem? – o garoto perguntou friamente. Percebeu que deveria ter ficado com a boca fechada.
Não responderam. Fitaram-no como se fosse algo interessante. O grande medo havia diminuído. Quando deu um suspiro de alívio, eles começaram a bater nele, dando socos, chutes e pontapés.
Ganhou um soco muito forte na barriga que o fez cair no chão novamente. Seus óculos caíram no chão e se distanciaram dele. De olhos fechados, ele procurava desesperadamente. Um chute atingiu em cheio seu rosto, fazendo gotas de sangue sairem de sua boca. Hardrik urrou desta vez. Sentiu muita dor, seus olhos começaram a lacrimejar, mas ele não iria abri-los de jeito nenhum.
Aquelas criaturas, riam abertamente, mas não se comunicavam. Não trocaram nenhuma palavra uma com a outra. Antes que Hardrik revisse isso também, ele ouviu passos vindo do lado oposto de onde estava.
- Quem está aí? – ele arriscou perguntar, sem abrir os olhos.
Ninguém respondeu no momento. Ele percebeu que tudo ficara quieto. Sentia alguém ao seu lado, e isso pelo jeito fez as três criaturas começarem a correr. Uma voz masculina falou:
- Onde pensam que vão criaturas diabólicas? – disse com um sorriso irônico.
Hardrik não viu, mas a pessoa caminhou e ficou a sua frente, de modo a protegê-lo. Sem aviso, o recém-chegado retirou um arco grande e brilhante, prendeu nele uma flecha cinza grafite. Em vez das cordas que armavam as flechas, um fio verde esmeralda ia de ponta a ponta do arco e parecia perigosa. Ele deu pressão na flecha e, de repente, a lançou atingindo em cheio uma das criaturas que estavam correndo. A coisa se dissolveu no chão e uma fumaça amarelada surgiu no ambiente. As outras criaturas escaparam, atravessando a outra rua. O garoto ficou no chão e ainda procurava seus óculos. Os passos se aproximavam, e Hardrik ficou com medo. Antes que o salvador pudesse dizer algo, Hardrik já ia falando:
- Quem é você? – estava tremendo ainda, com a surra que levara. Seus lábios estavam cortados e sangravam, sua barriga doía, e ele não havia encontrado seus óculos ainda.
- As coisas da qual o salvei são perigosas. Você deve tomar cuidado. – a pessoa falava ao ouvido dele. – Por hora, não direi quem sou, mas iremos nos encontrar de novo Sullivan.
- Quê? – ele disse baixo. – Como você me conhece? Eu te conheço? Você poderia me entregar os óculos?
O estranho apenas sorriu.
- Calma garoto. Não seja apressado. Tome seus óculos. – ele lhe entregou e falou antes de ir: - Vejo que gostou do meu presente.
O garoto pôs os óculos rapidamente para dar uma olhada na pessoa que falava com ele, e para seu desapontamento ela desaparecera, e os seres estranhos também. O que era aquilo? Quem o salvou? Um tanto irritado, ele se levantou desajeitado e começou a limpar a sujeira de sua roupa. Ainda saía um pouco de sangue de seu lábio cortado e sua barriga doía muito. Tentava limpar o sangue com a língua e andava com uma das mãos na barriga. As pessoas pelas quais ele passava as olhavam extremamente diferente, como se ele fosse um vagabundo. Temeroso pelos últimos acontecimentos, ainda olhava para todos, com receio de que as criaturas voltassem. Entretranto, gostaria de conhecer a pessoa que o salvara no beco.